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Aquela Manhã de Sábado


- O que você está fazendo aí na calçada? Vamos entrar para tomar café. Acabei de comprar pão.
- Já vou. Vou chamar os meninos.
- Deixo-os dormir. Hoje é sábado e eles levantaram cedo todos os dias para ir à escola. Vamos tomar café só nos dois mesmos.
A mesa do café estava pronta: manteiga, queijo, mortadela, café, quatro canecas brancas enfileiradas sobre uma bandeja, tudo sobre uma toalha florida.
Eles se sentaram. O dia estava quente. A cozinha era bem arejada, com portas e janelas largas. A mesa de madeira se encontrava no centro, com oito lugares. Dividia o espaço com uma geladeira um pouco desgastada, um fogão antigo, uma pia cinza e um cheiro de casa antiga. Era possível se observar a imagem de um São Benedito pregada na parede.
- O leite está na geladeira?
- Está sim, já vou pegar para esquentar um pouco para mim.
- Não esquente tudo, quero leite frio.
- Claro, sei disso. Ah! Você viu que a Dorinha vai se casa.
- Casar? Com quem?
- Com o Dorival, claro. Parece que ele a pediu em casamento semana passada.
- Esse pessoal é estranho! Eles não tinham rompido? Ela não estava chorando aqui em casa esses dias?
- Mas isso já faz tempo Claudemir. Como você é atrasado! Depois disso muita água já passou por baixo desta ponte...Acho que eles formam um casal bem bonito. Lembra-se de quando nos casamos?
- Faz tanto tempo. Éramos tão jovens, tão entusiastas que nem pensávamos nas conseqüências.
- Que conseqüências? Nossa, falando assim até parece que você está reclamando.
Ele sorriu e a puxou pela cintura, ela fingiu fazer uma resistência, mas deixo-se levar por aqueles braços que já a enlaçaram diversas vezes nesses 19 anos.
Ele a abraçou, beijou seu pescoço, sorriram juntos, numa mistura de lembrança, cumplicidade e amor. Ficaram abraçados por alguns segundos. Ela virou-se, deu-lhe um beijo vagaroso e foi apagar o fogo, o leite já havia fervido.
- Vamos precisar de roupa nova para o casamento. Eu tenho o vestido que usei no casamento da Leila, você tem aquele terno preto, mas os meninos cresceram, vão precisar de roupa nova.
- Tudo bem. Ou podemos ver se o Juquinha ou o Jefersson tem alguma roupa.
- Nossa Claudemir, já faz tanto tempo que não compramos uma roupa para os meninos. Acho que não custa nada fazer um agrado.
- Depois a gente vê isso. Vocês mulheres são tão apressadas. O casamento não vai ser amanhã, vai?
- Claro que não, mas é bom se programar antes, assim dá para pesquisar melhor os preços. E precisamos pensar nos presentes também.
- Ai, ai nega. Você e suas preocupações.
- Ah, o açúcar, esqueci. Você pode pegar aí na geladeira?
- Onde?
- Alí, do lado do pote de arroz. Com qual camisa você vai querer ir no churrasco da Benê?
- Toma! Qualquer uma, você sabe que não ligo para essas coisas.
- Vou pegar aquela azul. Hum...o pãozinho desta padaria é realmente muito gostoso, queimadinho, do jeito que eu gosto... Eu vou com o vestido amarelo. E não esqueça que a gente precisa ir mais cedo. Eu disse que íamos ajudar a preparar a comida.
- Tudo bem, é aqui do lado mesmo.
- Vou fazer aquela farofa que você adora. Assim que acabar o café vou no mercadinho comprar farinha, precisa de alguma coisa de lá?
- Não, vou arrumar o portão. Aquela fechadura está caindo.
- Já era tempo, não sei como ainda não ficamos presos aqui.
Olhou para ele e sorriu. Ele retribuiu o sorriso e saiu. Ela ajeitou a mesa para os filhos, lavou os copos e foi para o mercadinho.
A rua era estreita e florida. As casas eram pequenas, exalavam um ar de tranqüilidade. O sol iluminava o caminho, as árvores davam abrigo e o vento acariciava de leve a pele.
Ele terminou de arrumar a fechadura. Levantou a cabeça e a viu caminhando pela rua, voltando do mercadinho com o embrulho da farinha. Começou a pensar naquela mulher que acordava todos os dias ao seu lado, começou a pensar na vida que levavam e nos sonhos que já construíram e naqueles que precisaram destruir.
Apoiou-se no muro e começou a olhá-la. Olhou-a de longe, como se a muito não a visse. O sol batia nos cabelos, cada cacho brilhava ao leve balançar de cabeça. O sorriso descontraído, típico da adolescência. Como era possível que ela conservasse este frescor juvenil, mesmo depois de todos estes anos?
Fazia tempo que não a olhava deste jeito. Os anos haviam se passado. As curvas daquele corpo amadureceram. Mas o brilho faceiro daqueles olhos negros continuavam fascinantes.
Vinha deslizando pela rua, naquela manhã tranqüila de sábado. Os quadris ora para um lado, ora para o outro. A barra do vestido acariciava os joelhos. Através do decote, um bom observador poderia ver uma gota faceira de suor percorrer os seios.
O ar se perfumou. A rua ganhou novas tonalidades. Tudo parou. Só havia ela. Apenas ela importava. Mesmo depois de todos estes anos... Ele sorriu em silêncio e mergulhou na tranqüilidade daqueles que contemplam o infinito em um instante.

Comentários

  1. Gosto bastante do jeito que você escreve!
    é real, tem até cheiro!
    parabéns! e continue

    saudades

    ResponderExcluir
  2. Muito bom! Continue escrevendo, vou adorar ler.. ^^

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