Cotidianamente somos bombardeados
por padrões, por normas, por modelos. Aprendemos a estabelecer limites e
prioridades, somos ensinados a separar e hierarquizar as tarefas, nos tornamos
servos do relógio, da aparência, das normas, ou para usar uma expressão de
Foucault vivemos na ditadura da beleza e na ditadura do relógio.
Até mesmo os sonhos foram
padronizados, o que se entende por felicidade vem hoje embrulhado dentro de
caixas ou se encontra em certos lugares que aceitam cartão de crédito. Dentro
do turbilhão de tarefas do cotidiano falta tempo para uma respiração mais
profunda, calma e intensa. E quando finalmente se tem um tempo livre, vem a
necessidade de preenche-lo com algo, afinal há muito o que se ver, lugares
diferentes a se visitar, caminhos para serem experimentados, situações a serem
vividas. Nada contra em se ter novas experiências, se isso vier junto com o
olhar para dentro de si mesmo, aquela “dangerossíssima tarefa” de que já falava
Drummond. Neste sentido, muitos sonham, mas poucos são aqueles que tem a
capacidade ou ousadia para se perguntar: Que sonho eu quero viver? De quem será
o sonho que estou sonhando?
Um filme que trabalha questões
relacionadas ao sonho e a criação de ideias é Inception (2010) de Christopher
Nolan, que se inicia com a seguinte frase: "Qual é o parasita mais
resistente? Uma bactéria? Um vírus? Não. Uma ideia! Resistente e altamente
contagiosa. Uma vez que uma ideia se apodera da mente, é quase impossível
erradicá-la. Uma ideia que é totalmente formada e compreendida, permanece".
Você alguma vez já se perguntou como se forma uma ideia? Qual a proporção entre
os desejos próprios e o desejos dos outros na formação de uma ideia? E este
“outro” ao qual me refiro não necessariamente precisa ser uma outra pessoa,
pois nossa mente tem a capacidade de nos impor interpretações e limites que não
percebemos, como se estivéssemos dentro de uma caixa espelhada, onde tudo
parece muito vasto, sem perceber o limite imposto por nossas próprias
projeções. Para atravessar a caixa é preciso antes quebrar o espelho, tarefa
difícil e dolorida, pois exige a coragem de se olhar bem de perto, sem
idealizações, a fim de distinguir o reflexo do que é refletido,
E o que se encontra depois do espelho? Outros
caminhos a serem percorridos, não necessariamente mais fáceis ou melhores do
que os anteriores. Caminhos que escondem diversas outras paredes de espelhos a
serem quebradas e outras tantas que passamos a vida inteira sem perceber que
existiam. Por isso, para muitos é mais
cômodo permanecer dentro da caixa de espelhos, preferem se acostumar com os
fantasmas e medos do que enfrentá-los. Afinal, enfrentar os fantasmas criados
por nós mesmos não é nada fácil, já que na batalha a mente utiliza como munição
nossos medos mais profundos e para vencer é preciso encarar as limitações, as
falhas, os desejos e conseguir, este é o ponto mais difícil, perdoar a si mesmo.
No filme Inception, Dom Cobb
(interpretado por Leonardo di Caprio) realiza o processo de catarse ao
confrontar a imagem de Mal (Marion Cotillard) e separar o reflexo daquilo que é
refletido, assim consegue perdoar a si mesmo pela morte da esposa e finalmente
olhar para o rosto de seus filhos. Mas, sendo a catarse um processo
extremamente difícil, principalmente se tratando da mente perturbada de Cobb,
quem o conduziu pelos labirintos da mente? Muitas são as interpretações a este
respeito. Uma teoria diz que Ariadne (Ellen Page), instruída por Mile (Michael
Caine) seria a guia, responsável por inserir a ideia na mente de Cobb, já que
como arquiteta tem por função manipular a física do sonho, no sentido de transformar
o mundo onírico em uma espécie de labirinto, para que o “alvo” não chegue aos
limites do mundo criado e perceba se tratar de um sonho, ao mesmo tempo que permite
chegar ao lugar onde os segredos são mantidos.
Ao ser o fio condutor da trama
Ariadne faz jus ao seu nome, já que na mitologia Ariadne é quem ensina Teseu a
se guiar no labirinto de Tebas e a derrotar o Minotauro, dando a ele um rolo de
fio, que ficou conhecido como o "fio de Ariadne", para ele sempre
saber por onde veio.
No final do filme Cobb estaria
então livre de qualquer sentimento de culpa pela morte de Mal. No entanto, estaria
ele ainda dentro de um sonho? Em outras palavras, a catarse se realizou por
completo permitindo a quebra do espelho e a separação entre virtual e real ou a
sensação de culpa era tão intensa que só seria possível ameniza-la dentro das
ilusões de um sonho? Este ponto está aberto para várias interpretações, uma das
quais afirma que o totem utilizado por Cobb para distinguir a realidade do
sonho não é o peão, este seria o totem da Mal. O verdadeiro totem de Cobb seria
a aliança: nos sonhos ele estaria usando aliança, como uma projeção da mente,
uma forma da mente de Cobb mostrar que não aceitou a morte de Mal. Se isso for
verdade, quando Cobb reencontra os filhos no final do filme ele voltou a
realidade.
Mas, porque a realidade do final
do filme se parecesse tanto com a casa do penhasco presente no sonho de Saito (Ken
Watanabe)? E como ele voltou a realidade? Se Cobb e Saito estavam presos no
limbo e ao morrer no limbo você sobe apenas um nível no sonho, como então eles
voltaram à realidade? Suicídios em sequência? O final seria um sonho construído
por Saito e Cobb? Seria o filme inteiro um sonho de Cobb, que ficou perdido no
mundo onírico depois de alcançar o limbo com Mal? Mal realmente morreu? Os
personagens do filme são unidimensionais, sem complexidade, porque não
passariam de projeções da mente de Cobb?
O película deixa vários pontos
abertos a interpretação, o que motivou muita gente a procurar análises
interpretativas sobre o filme, mostrando que Nolan conseguiu plantar uma ideia
na mente de várias pessoas. A capacidade de criar ideias e propiciar um sonho coletivo
é uma das características mais excepcionais do próprio cinema. Por isso,
Inception pode ser interpretado como uma alegoria do próprio fazer
cinematográfico, na qual Cobb responsável por orquestrar os acontecimentos,
representaria o diretor, Ariadne sendo quem cria as estruturas do sonho seria a
escritora e Arthur (Joseph Gordon-Levitt), responsável por organizar os
acontecimentos, representaria o produtor. Eames (Ton Hardy) ao interpretar
outros personagens dentro da trama cinematográfica, seria a representação do
ator, enquanto Yusuf (Dileep Rao) representaria os efeitos especiais e as novas
tecnologia. Todo filme precisa de um financiador, este seria representado pela
figura de Saito (Ken Watanabe) e Maurice Fischer (Pete Postlethwaite)
representaria a audiência.
Portanto, Inception já é ele
mesmo um processo de inserção, lançando possibilidades e nós convidando a
construir a partir do que foi fornecido. Mas, porque a indefinição presente no
filme gera desconforto em várias pessoas? Porque estamos acostumados a seguir o
que é pré-determinado, a acatar respostas prontas, nossos olhos se limitam a
aceitar o que está posto, assim quando somos desafiados a preencher as lacunas
nos sentimos extasiados e perdido ao mesmo tempo. O ponto central de Inception não é apenas se
estamos sonhando ou se estamos acordados, ele vai além ao questionar a própria
padronização do olhar, é como se, ao final do filme, o pião em movimento
perguntasse a cada um se somos capazes de interpretar, criar e de perceber a
verdade por trás da própria criação.
“Devemos
compreender que a verdade, por pretender ser verdadeira, não passa de ilusão ou
mentira” – Nietzsche
Os símbolos são
mais reais que aquilo que simbolizam, o significante precede e determina o
significado - Lévi-Strauss
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