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O vento

O olhar ao longe, como se estivesse a procurar algo inexplicável. As folhas balançavam ao som do vento. Um vento frio e incessante. Não estava só, o silêncio o acompanhava. Um silêncio que só a ele pertencia. As sensações se misturavam. A pele se desfazia, assim como se esvai o sutil tocar de lábios. Amores tenros e momentâneos.
O calor de seu corpo esfriava. O som das vozes perdiam-se no vento. Tudo girava. Não era mais possível distinguir o que era real e o que havia sido um sonho. Tremia. Não conseguia saber bem o porquê. Seria pelo vento gelado, ou pelo calor que se esvaia do corpo? Impossível determinar. Tudo, tudo tão longe. Os pensamentos se perdiam nos caminhos da lembrança. Misturavam-se os sonhos, os desejos irrealizados, os medos e anseios que o angustiavam antes de dormir. Um turbilhão formado por tudo que ele foi e por tudo que desejou ser e fracassou. Por muito tempo almejou ter o poder de esquecer. Fugir das lembranças que teimavam em enlaçá-lo e assombrá-lo. Agora isso não importava mais.
Depois de cada tropeço, de cada decepção, a vida sempre voltava a ser a mesma. Mas ele mudava e a adaptação tornava-se cada vez mais difícil. Sentia um medo de perder o que nem ao menos tinha. Um vazio. Não era mais possível suportar.
O vento era forte e rápido. O ar perdia-se. Respirava com dificuldade. Não era mais possível retê-lo nos pulmões. O corpo adormecia. Parecia não mais pertencê-lo. Aos poucos seria apenas uma lembrança. Um pensamento perdido em alguma mente. A idéia de tornar-se um personagem de si mesmo o agradava. Pensava em como cada pessoa o construiria para a posteridade. As virtudes e os vícios que o acompanhariam o seu nome. Sorriu.
Percebia que alguém tentava lhe dizer alguma coisa. Eram gestos perdidos. Lentos. Vazios como ele. Cada vez chegavam mais sombras. Agitavam-se. O que estaria acontecendo? As pessoas se assustam com tudo que as retiram da rotina. Como as formigas. Dificilmente percebem o sublime, estão sempre muito ocupadas na procura do extraordinário ou na fuga do tédio. Também ele procurava fugir, não do tédio, mas do desconcerto do sublime que impossibilita a adequação.
O céu estava pintado todo de azul. Não se encontrava nenhuma mancha. As copas das árvores continuavam balançando. Mas ninguém parecia perceber. Tentou perguntar a causa de tamanho tumulto. Vida e morte são eventos que se completam. Não há porque se surpreender. A voz não saiu. O silêncio bloqueava qualquer ruído. Durante a vida poucas vezes apreciou os ruídos. Preferia o grito surdo das palavras não pronunciadas. Os olhares que se encontravam e se afastavam. Alguns nunca saem da memória, por mais distantes que estejam no tempo.
Sentiu o corpo se elevando. Eram alguns braços que o suspendiam. A sensação, no entanto, era outra, como se de repente começasse a levitar. Livre para vivenciar qualquer espaço. Calmo.
O medo de não viver sempre o atormentara. Possuía uma ânsia de vida. Como se estivesse sempre prestes a morrer. O desejo de vida era tanto, que tornava a própria vida insuficiente. A continua destruição de si mesmo.
O frio aumentava. Os pensamentos se misturavam. Uma névoa encobria os rostos e os gestos. No céu, apenas um pássaro solitário sobrevoava a cena. Um pássaro negro e belo, que produzia um som estridente. Era o único ruído que ele conseguia perceber. Olhou fixamente para o alto. Assim ficou até que o calor voltou ao seu corpo e as explicações perderam qualquer importância.

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