Na rua deserta uma sacola plástica voa, levada pelo
vento. Fico parada, olhando fixamente para a sacola vermelha que contrasta com esta
manhã acinzentada. As lembranças de quando era criança invadem minha mente, como
sementes que a muito tempo ficaram enterradas, aguardando apenas que alguém ou
algo as regasse. Quando criança, eu adorava soltar sacolas nos dias com muito
vento, só para ver até onde chegaria. Era como se competisse com o vento, que
parecia também gostar da brincadeira, porque levantava a sacola cada vez mais
alto.
As lembranças chegam tão vívidas que posso até ouvir
as risadas das crianças, o cheiro da liberdade e da simplicidade. Sorrio, com ar
de saudade. Sinto uma vontade quase incontrolável de correr atrás daquela
sacola. Digo quase incontrolável porque no último momento consigo me conter.
Limito-me a fechar as mãos, para esconder a minha vontade entre os dedos. Observo
a sacola desaparecer no meio das árvores, do outro lado da rua.
O dia está calmo e úmido. Não há ninguém na rua,
apenas o vento gelado e contínuo passeia nesta manhã. Fecho o casaco, o ar frio
parece conseguir entrar por embaixo da roupa. As copas das árvores começam a
balançar com mais força. A chuva se aproxima, o céu agora está tomado por
nuvens cada vez mais pesadas. A rua continua deserta. Onde estaria todo mundo.
Aos poucos, sinto pingos de água molharem meu casaco, são
pingos grandes e esparsos. Abrigo-me embaixo da marquise de um prédio, a chuva
agora começa a engrossar, o vento leva finos jatos de água para todas as
direções, em pouco tempo estarei completamente encharcada. A chuva forma uma
cortina branca tão densa que já não é possível ver o outro lado da rua.
O vento sopra cada vez mais gelado, a roupa úmida aumenta
a sensação de frio, as árvores balançam incontrolavelmente, temo que algum
galho possa vir a cair sobre a marquise. Mas, o que posso fazer? Não tenho mais
aonde me abrigar. Cruzo os braços, como se abraçasse a mim mesmo, na tentativa
de me aquecer e de me acalmar. A chuva diminui e o vento atenua seus rodopios.
Há alguém do outro lado da rua. Parece uma menina. Sim,
ela está sentada embaixo de uma das árvores, brincando com alguns galhos
derrubados pelo vento.
Uma menina no meio desta chuva! Que absurdo! E, ainda
por cima está sozinha. Uma luz chama a
minha atenção, é o ônibus que enfim se aproxima. Automaticamente, faço sinal
para que ele pare. Preciso pegar este ônibus. E o que fazer com a menina do
outro lado da rua? Alguém tem que ajudá-la, está sozinha e toda molhada. O
motorista, ao perceber a minha indecisão diz em voz alta: Você sobe ou não?
Como em um impulso, eu subo.
Tenho vontade de falar para o motorista sobre a menina
do outro lado da rua, não digo nada. O ônibus está vazio. Sento-me em uma das
poltronas enquanto o motorista acelera. Olho pela janela e lá está a menina,
que agora não mais brinca, encara-me. Assim que o ônibus se move, a criança abre
um sorriso e acena, com carinho, como se estivesse se despedindo de alguém
muito querido. Não aceno de volta. Sinto um pingo de água escorrer pelo rosto e
pousar no casaco encharcado. Se alguém estivesse vendo esta cena poderia supor
que a gota que escorrera era apenas mais uma causada pela chuva lá fora, mas de
algum modo eu sei que aquele não é um simples pingo de chuva, é um pingo de
sonho, que escorre devagar. Fecho os olhos e adormeço.
Quando enfim desperto,
tudo está muito nebuloso. Estou no meio de um corredor, formado por uma parede
branca, como a lateral de uma casa, e, por um muro baixo, corroído pelo tempo. Como
vim parar aqui? As lembranças correm e se escondem na parte escura da
consciência. Tento em vão alcançá-las. Estico o braço para tocá-las com o dedo.
Inútil. Elas escapam novamente.
Caminho com passos
curtos. Será que morri? Olho para as minhas mãos, a pele denuncia os anos
vividos. Passo por uma janela pintada de verde, um modelo antigo, daqueles que
abrem para fora. Há alguém lá dentro. Ouço
um barulho tímido, quase apagado. Será melhor gritar por socorro? Pedir
informação? Ou será mais prudente me esconder? Fico imóvel. A indecisão aperta
o estômago, a respiração acelera. O barulho se aproxima, torna-se mais nítido.
De súbito me abaixo. Acho que os anos carregaram grande parte da minha coragem.
Fico de cócoras, com
as costas apoiadas na parede da casa. Um cheiro de café desliza pelo ar. Aquele
cheiro quente faz meus músculos relaxarem. Respiro fundo, o aroma preenche meus
pulmões. Sons de risadas me retiram da introspecção. Abro os olhos a tempo de
ver uma menina passar correndo. Ela para no final do corredor e me olha,
sorrindo. Uma criança de aproximadamente seis anos, de cabelos negros presos com
rabo de cavalo e um sorriso largo e expressivo. Com movimentos leves, volta a
correr e desaparece, se escondendo atrás da parede.
Eu conheço aquele
rosto. Tento buscar na memória alguma forma de ligação. As imagens se misturam,
rodopiando até provocarem náuseas. Tem algo nos olhos dela que me intriga.
Levanto, mais rápido
do que imaginava conseguir, e sigo até o final do corredor. À medida que caminho,
começo a reconhecer aquele espaço. Tenho a impressão de já ter passado por ele.
Encontro um desenho no muro, são linhas feitas de giz. Não é possível
distinguir muito bem o que representam. Só sei que há nelas algo que traz uma
sensação de pureza.
Ao final do corredor
há um amplo quintal, com uma mesa de madeira, envelhecida pelos anos. Mais ao
fundo uma parte de terra, repleta de plantas e lugares a serem explorados. Na
lateral, há uma segunda casa, pequena.
Crianças correm de um
lado para o outro. Olho em todas as direções, à procura da menina de cabelo
preso com rabo de cavalo, não a encontro. Em um dos cantos, no limite entre o
cimento e a terra, há flores amassadas dentro de potes de margarina, duas
vasilhas plásticas estão unidas por uma espécie de canudo em espiral. Parece a
imitação de um laboratório. Um menino gordinho está entretido, amassando as
flores, com um cuidado e agilidade de quem sabe muito bem o que está fazendo.
No centro do quintal,
sob a mesa de madeira, duas meninas de roupas encardidas parecem ocupadas. A
menor tem cabelos loiros na altura dos ombros, a outra tem cabelos negros e
escorridos. Estão rodeadas de vasilhas, todas lotadas de terra molhada. As
meninas se dedicam a amassar e moldar a terra, jogando pequenas quantidades de
água, até atingir o ponto ideal. Há rastros de barro por toda a parte. Ao
terminar o trabalho, gritam com vozes finas “quem quer bolo! Está fresquinho!
”.
Depois de dois ou três gritos, dois meninos de
rolimã vêm a toda velocidade, um moreno de sorriso cintilante e um mais novo,
de boné preto, que morde um lado dos lábios, em clara expressão de competição.
O moreno quase bate no meu calcanhar, consigo desviar no último instante. O
mais novo grita “eu quero o bolo maior”. A menina de cabelos loiros entrega o
pedido, depois de embolsar um papel colorido como pagamento.
Assim que recebeu o
bolo, o menino de boné enfia a mão na vasilha e joga um pouco de barro no seu
adversário de rolimã. Começa uma guerra de lama, acompanhada de várias risadas.
Diversos pedaços de terra voam na minha direção. As duas meninas saem debaixo
da mesa, o menino gordinho larga os afazeres do laboratório para participar da
brincadeira. Observo a cena, na esperança de que a menina de olhar intrigante
se aproxime para brincar.
Depois de alguns
minutos, uma garota de cabelos curtos começa a gritar: “parem com isso, a vovó
vai brigar com a gente”. E, assim que consegue a atenção de todos, completa “Eu
vou ser a vendedora de roupas. Aqui vai ser minha loja”, disse apontando para
uma porta que parece ser um depósito ou algo do tipo, enquanto carrega uma
pilha de roupas recém retiradas do varal.
Um garoto, que parece
ser o mais velho dentre eles, está sentado na soleira da porta, amarrando uma
caneca de plástico na ponta de uma vara de madeira, daquelas que antigamente
eram usadas para levantar o varal. Assim que se certifica que a caneca está bem
amarrada, grita para os demais “Está pronto, vamos”. Ele fala com a
assertividade daqueles que comandam as brincadeiras. Todos saem correndo e vão
até a parte final do muro, perto de uma enorme goiabeira. Lá começa a
empreitada: pegar emprestado amoras do vizinho, sem que este saiba.
Depois de três ou
quatro canecas serem preenchidas, uma senhora aparece na porta da casa
principal. Ela tem os cabelos finos presos em forma de coque e olhos verdes,
que são os mais lindos que eu já vi. Ela grita “Venham tomar café”. As crianças
nem esperam a frase ser completada e já saem correndo em direção à senhora.
Eu não me mexo. Sinto
a imobilidade que se tem frente a uma revelação. Retalhos de imagens vão se
unindo. As lembranças enfim saem do esconderijo e se deixam observar. Um calor
inexplicável percorre o meu corpo, sinto a alma tremer. Olho para minha mão, já
não encontro a pele envelhecida, vejo uma mão pequena, pintada de barro seco,
com terra sob as unhas. Vejo uma camisa encardida, com restos de terra e amora.
A senhora continua na
porta, ela me observa atentamente e ao final de alguns instantes volta a gritar
“Você não vem, acabei de fritar uns bolinhos, se demorar muito eles vão
esfriar”. Tem algo no modo com o qual ela me olha, como se ela pudesse ver
muito além do que eu imagino. Saio correndo em disparada. Meus músculos não
pesam, já não carrego mais a carga dos anos passados, só restam a frescura do
barro, a leveza do cheiro de café e a esperança das gargalhadas que colorem o
ambiente.
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